“Pintei da minha cor, tá? Cansei desses desenhos diferentes de mim!”
Foi assim que um menino da 5a série de uma escola em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, explicou a sua professora porque havia pintado de marrom os personagens da Turma da Mônica na capa da prova. Essa história aconteceu em 2014 e muitos ainda devem se lembrar. A atitude de Cleidison, na época com 10 anos, trouxe à tona a pouca visibilidade do negro nas histórias infantis. Cleidson, assim como muitas outras crianças brasileiras, não se via representado nas histórias infantis a que tinha acesso.
A escritora nigeriana Chimamanda Adichie, na palestra “O perigo de uma única história” no TED (Technology, Enterteinement and Design) aqui , faz uma bela reflexão sobre a construção de estereótipos, de pessoas ou lugares, através de histórias únicas contadas repetidamente. Chimamanda conta sobre sua infância e diz que quando criança teve acesso muito cedo a literatura e foi uma leitora precoce, por volta dos 4 anos já sabia ler. Porém os livros a que tinha contato eram americanos ou britânicos onde os personagens eram muito diferentes dela. Aos 7 anos ela começou a criar suas próprias histórias e reproduzia as características europeias em seus personagens: sempre brancos e de olhos azuis. O que a escritora chama a atenção é que não havia histórias em que ela pudesse se reconhecer. Tudo o que ela havia lido até então eram livros nos quais os personagens eram estrangeiros “eu me convenci de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar”.
Isso aconteceu até o dia em que a autora entrou em contato com a literatura africana. A partir daí sua visão mudou: “Eu passei por uma mudança mental em minha percepção de literatura. Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de chocolate, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos-de-cavalo também podiam existir na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia”. Assim como Cleidson, Chimamanda precisava de espelhos, precisava se reconhecer nas histórias.
Onde está o negro na literatura brasileira? A escritora e professora da UNB, Regina Dalcastagnè, fez uma pesquisa sobre a literatura contemporânea brasileira que durou 15 anos e na qual constatou a pouca presença de negros nos romances brasileiros e, quando essa presença existe, são personagens quase sempre de figuras marginais. O trabalho pesquisou todos os romances brasileiros publicados pelas principais editoras do país entre os anos 1990 a 2004 e 258 romances analisados, concluiu-se que 96% dos autores e 76% dos personagens são brancos. O que podemos entender com essas informações? A sociedade contemporânea está realmente representada na literatura? A pouca visibilidade do negro na literatura é um dos reflexos de uma sociedade ainda racista e o racismo dificulta a visibilidade do negro na literatura, seja como autor ou personagem. Essa discussão é longa, temos o mercado editorial, os prêmios literários, entre outros fatores, que homogenizam a literatura contemporânea brasileira. Vale a pena a leitura do livro “Literatura brasileira contemporânea: Um território contestado”, 2012, ed. Horizonte.
No Brasil, um importante passo no reconhecimento do negro na formação da sociedade brasileira foi a implementação da lei 10.639/03 que torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental e ensino médio em toda a rede de ensino ( publica e particular). A lei estabelece “ o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil“. A partir daí, para atender a nova demanda escolar, muitos livros sobre a cultura africana começaram a despontar nas editoras. A demanda por histórias representando a cultura negra abriu um novo mercado. Muitos livros contando histórias do continente africano foram lançados. Mas há ainda muito a ser feito. A falta de conhecimento e de comprometimento, e até mesmo o racismo e a falta de formação de professores, são entraves para que o tema esteja nas salas de aula.
Espelho
A literatura infantojuvenil pode ser o espelho, o começo da transformação para meninos como Cleidson. Uma literatura onde o negro seja sujeito da história, referência, o protagonista principal. Queremos livros que falem da nossa diversidade. Queremos as histórias de reis e rainhas africanas, das lendas, das línguas e dialetos de diferentes povos que vivem em um continente tão grande como a África. Queremos também histórias comuns. As crianças negras querem se ver nos livros não apenas como parte de uma herança cultural, mas também como heróis, princesas, super-heróis, ou apenas como crianças que brincam, que se divertem e que a cor de sua pele ou o seu cabelo não sejam as principais questões abordadas na história. Que as crianças possam ser quem elas quiserem ser e que possam sonhar através da literatura. Para isso livros variados devem estar a disposição das crianças para que elas possam escolher o que elas querem ler!
Graça Lima e Mariana Massarani são autoras e ilustradoras que têm essa percepção de criar histórias com personagens com características bem brasileiras. No livro “Cadê”, de Graça Lima, editora Nova Fronteira, o protagonista é um menino negro, de uns dois anos, que brinca com a imaginação e transforma objetos da casa em animais: o sofá vira um rinoceronte, a geladeira se transforma em urso polar. Outro livro, “Banho”, de Mariana Massarani, conta a historia de quatro irmãos que na hora do banho criam as maiores aventuras. Os personagens têm a pele morena, como a maioria dos brasileirinhos. Outros títulos ilustrados por Mariana Massarani são: “Controle Remoto” com ótimo texto de Tino Freitas; “A menina que não era maluquinha e outras histórias” da Ruth Rocha. Em todas essas histórias personagens negros estão ali presentes para mostrar nossa diversidade. E essa também é uma forma de combater o racismo.
“O menino Nito” é outro belo exemplo. A autora Sonia Rosa (mesma autora do livro “Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta”) traz a história do menino Nito que desde de muito pequeno sempre chorava por qualquer coisa e ninguém aguentava mais. Um dia seu pai diz que homem não chora e Nito passa a engolir o choro. Qual será a consequência disso? Com ilustrações de Victor Tavares acompanhamos a história de Nito e aprendemos um bocadas o coisas. Nito é um menino negro, com uma família negra.
“Tanto Tanto” da escritora inglesa Trish Cooke, com ilustrações de Helen Oxenbury, ed. Ática, exemplifica bem o que estamos falando aqui: narra a tarde de um bebê ao ser festejado por cada membro da família que chega em casa. O bacana do livro é que traz uma família negra comum, que pode ser qualquer família. Não é uma história sobre negros ou para negros, é uma história sobre um bebê, qualquer bebê e que pode ser o espelho para muitas crianças negras.
Outros livros que entram nesta categoria são: “Lulu adora a Biblioteca”, de Anna Macquinn e Rosalind Beardshaw, editora Pallas; “Cadê Maricota”, May Shuravel. Editora Salamandra; “O balde das chupetas”, Bia Hetzel e Mariana Massarani, ed. Binque-Book. A “Cinderela das Bonecas” de Ruth Rocha e ilustrações de Mariana Massarani, editora Salamandra.
Ampliemos nosso olhar e busquemos a diversidade na literatura. A ausência de personagens negros causa impactos profundos na construção da identidade de meninos e meninas como Cleidson. Como diz Regina Dalcastagnè, o que está em jogo na literatura é a possibilidade de falar sobre si mesmo e sobre o mundo e de “se fazer visível dentro dele”.